segunda-feira, 28 de novembro de 2005

As Intermitências da Morte

" Era uma vez, no antigo país das fábulas, uma família em que havia um pai, uma mãe, um avô que era o pai do pai e aquela já mencionada criança de oito anos, um rapazinho. Ora sucedia que o avô já tinha muita idade, por isso tremiam-lhe as mãos e deixava cair a comida da boca quando estavam à mesa, o que causava grande irritação ao filho e à nora, sempre a dizerem-lhe que tivesse cuidado com o que fazia, mas o pobre velho, por mais que quisesse, não conseguia conter as tremuras, pior ainda se lhe ralhavam, e o resultado era estar sempre a sujar a toalha ou a deixar cair comida ao chão, para já não falar do guardanapo que lhe atavam ao pescoço e que era preciso mudar-lhe três vezes ao dia, ao almoço, ao jantar e à ceia. Estavam as coisas neste pé e sem nenhuma expectativa de melhora quando o filho resolveu acabar com a desagradável situação. Apareceu em casa com uma tigela de madeira e disse ao pai, A partir de hoje passará a comer daqui, senta-se na soleira da porta porque é mais fácil de limpar e assim já a sua nora não terá de preocupar-se com tantas toalhas e tantos guardanapos sujos. E assim foi. Almoço, jantar e ceia, o velho sentado sozinho na soleira da porta, levando a comida à boca conforme lhe era possível, metade perdia-se no caminho, uma parte da outra metade escorria-lhe pelo queixo abaixo, não era muito o que lhe descia finalmente pelo que o vulgo chama o canal da sopa. Ao neto parecia não lhe importar o feio tratamento que estavam a dar ao avô, olhava-o, depois olhava o pai e a mãe, e continuava a comer como se não tivesse nada a ver com o caso. Até que uma tarde, ao regressar do trabalho, o pai viu o filho a trabalhar com uma navalha um pedaço de madeira e julgou que, como era normal e corrente nessas épocas remotas, estivesse a construir um brinquedo por suas próprias mãos. No dia seguinte, porém, deu-se conta de que não se tratava de um carrinho, pelo menos não se via sítio onde se lhe pudessem encaixar umas rodas, e então perguntou, Que estás a fazer. O rapaz fingiu que não ouviu e continuou a escavar na madeira com a ponta da navalha, isto passou-se no tempo em que os pais eram menos assustadíços e não corriam a tirar das mãos dos filhos um instrumento de tanta utilidade para a fabricação de brinquedos. Não ouviste, que estás a fazer com esse pau, tornou o pai a perguntar, e o filho, sem levantar a vista da operação, respondeu, Estou a fazer uma tigela para quando o pai for velho e lhe tremerem as mãos, para quando o mandarem comer na soleira da porta, como fizeram ao avô. Foram palavras santas. Caíram as escamas dos olhos do pai, viu a verdade e a sua luz, e no mesmo instante foi pedir perdão ao progenitor e quando chegou a hora da ceia por suas próprias mãos o ajudou a sentar-se na cadeira, por suas próprias mãos lhe levou a colher à boca, por suas próprias mãos lhe limpou suavemente o queixo, porque ainda o podia fazer e o seu querido pai já não." Uma lição de vida tiradas das páginas de As Intermitências da Morte de José Saramago

terça-feira, 1 de novembro de 2005

Este blog está a tornar-se um pouco triste, com este, os dois últimos posts são daqueles que eu preferia não publicar mas, preferia ainda mais que o que os motivou não tivesse sucedido. Pedro, partiste há dois anos e ainda me lembro de ti constantemente, a revolta por não estares por cá continua presente. A única maneira de tentar ultrupassar é acreditar que estás num sítio melhor, que nos estás a ver, já que nós não te podemos mais ver. A vida é o que é, nós valemos o que valemos, mas continua a doer e é muito difícil aceitar esta ausência. Para não ser só coisas tristes, quero recordar momentos bons que tivemos juntos, aquele que me lembro melhor foi quando estávamos os dois em tua casa e a tua avó que recentemente tinha sido operada às cataratas me confundiu com o teu irmão e me tratou pelo seu nome. Tu, não a corrigiste e ainda a incentivaste ao chamares-me pelo nome do teu irmão, dizendo-me algo deste género - então Sérgio, não respondes à avó? - Acredita que já me ri imenso com esta situação e os nossos amigos também. É deste tipo de coisas que eu me lembro mais, disso e do teu sorriso inconfundível, aquele que estava sempre na tua cara... Grande abraço Pedro!